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ÁGUAS PASSADAS

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O conto Águas Passadas, um dos vencedores do Concurso Literário do Parque Arqueológicoe Ambiental de São João Marcos, no ano de 2021, narra a história do jovem estudante de letras João Marcos, que leva o avô, um quase centenário paciente de ancionato, numa viagem ao passado. Ao seu próprio passado, solapado pelo diagnóstico de Alzheimer.

É possível acessar a página do concurso literário e saber quem foram os demais vencedores, além de fazer a leitura dos contos, clicando aqui. E, a seguir, você pode ler na íntegra o conto Águas Passadas:

          Ele costumava acordar e andar pelos corredores do ancionato no meio da noite. Nem sempre seguindo essa ordem. Dependendo do dia, ressurgia de seu inconsciente apenas pela manhã, como se a caminhada não tivesse passado de um sonho. Um sonho repetido. E não importava os olhos fechados, as luzes completamente apagadas, o céu limpo de estrelas, nenhum lugar era mais escuro que dentro de Erasto. Em cada cômodo que passava do labirinto particular ia deixando poças onde os pés tocavam o frio granilite. As pequenas silhuetas d’água, espalhadas pelo chão que nem peças de um quebra-cabeça, com arestas demais para completar imagem, auxiliavam o enfermeiro de vigília no trabalho de resgate. Restava aos funcionários seguir a sua trilha, como no conto de fadas, noite após noite, já que não tinham autorização para preservá-lo amarrado ao leito e evitar seu passeio cego.

          Meu avô sofre de Alzheimer. Tudo que se sabe sobre o passado dele são as histórias que ouvi quando era criança. É uma pena descobrir isso tão tarde. Teria prestado mais atenção nele e brincado menos com as coisas que me distraíam da sua presença, naquele tempo, ainda tão inteira. Antes da sua mente ser apagada. Hoje, ele já não se lembra que foi um escravo. Que suas mãos nunca sararam e, muitas das marcas que carregam, não nasceram com elas. Que Eulália, sua falecida esposa, deu a ele os melhores anos de sua vida. Que seu nome significa “homem da paz”. Que eu sou seu neto, tenho 26 anos, sou estudante de letras e me chamo João Marcos em sua honra.

          “Seu Erasto não lembra que faz aniversário hoje”, ouço de um enfermeiro.

          Esqueço de respirar toda vez que penso no que ele perdeu.

          Nos anos em que esteve residente dessa instalação, dei ao meu avô todos os passados que pude. Criava uma história mais incrível que a anterior. Ele já foi o primeiro presidente negro do Brasil que, ao sofrer um terrível golpe de Estado, foi deposto e trazido como preso político até esse hospital de onde jamais saíra. Também foi um astronauta que, viajando pelo espaço, fez contato com desconhecidas criaturas, sendo forçado a viver em quarentena até que fosse descoberto o seu planeta de origem. E teve a vez em que ele substituiu um cantor, morto em circunstâncias nunca esclarecidas, na banda mais famosa do mundo e agora está escondido para que ninguém descubra o seu segredo. Quando foi jogador de futebol, precisou buscar isolamento por muitos anos depois de sofrer um gol na final da Copa do Mundo e ser declarado o culpado pela dolorosa derrota em pleno Maracanã, diante de milhares de torcedores.

          Porém, nenhuma das realidades que eu inventei teve sucesso em conquistá-lo. Não se envaidecia ou baixava o olhar após viver a sua vida de um dia, não obstante as glórias e derrotas nas quais o tivesse feito acreditar. Meu avô nunca lembrava delas na visita seguinte. Ou mesmo de mim. Para ele, não existia nada além do medo de água e do amor pela falecida esposa Eulália.

          “Eulá...”

          Muitas vezes, ao chamar o nome da minha avó, sua voz era interrompida. O corpo estremecia recuperando o fôlego suspenso. Eu esperava que, com os pulmões cheios novamente, ele apontasse na direção do que eu precisava olhar junto dele, mas os braços não tinham força igual a da minha torcida. Nesse momento, apenas os seus olhos ficavam firmes num horizonte distante no tempo, enquanto eu estava preso pelas paredes brancas do quarto.

          Sentei-me à beira da cama, aguardando-o regressar. Atinei que algo permanecia paralisando meu avô. Ele fazia força nos ombros. O silêncio que o entalava a garganta fatiou a palavra e foi expulso do corpo conforme tosse, empurrando-a junto.

          “Eu... lá...”

          Não tenho certeza se ele continuou chamando ou se o que ouvi foi um pedido para encontrá-la naquela terra sagrada onde deixara a companheira ilhada, mas em segurança, cercada pelo rio Lete por todos os lados. Aquele cujas águas, quando são tocadas ou bebidas, causam o total esquecimento da vida.

          Durante a infância, meus pais tiveram a difícil tarefa de tentar fazer com que eu entendesse a suposta homenagem ao meu avô. Eu só queria que meu nome dissesse o que todos já sabiam: era neto de Erasto, com “n” maiúsculo. Na primeira escolinha, arrancava a fita-crepe colada no peito do uniforme escrito pela professora com as letras mais redondas que já vi. Cresci e aprendi a rejeitá-lo nunca respondendo a chamada das aulas. Perto de ser reprovado por faltas e cansado de frequentar a diretoria, descobri a utilidade dos apelidos. Pensei ter enterrado o problema com meu nome por toda a adolescência desse jeito. O que nunca poderia imaginar é que, sem saber, ao tomarem juntos a decisão de me batizarem João Marcos, seus descendentes confiavam-me a maior e, talvez, a última conexão com a vida dele.

          O jovem Erasto foi trazido para trabalhar no Brasil, provavelmente do sul de Moçambique, mas não pôde ser vendido porque desembarcou muito debilitado pela excruciante viagem. Sua história antes da chegada ao país é um mistério, pois esse fora o ponto de partida escolhido para todos os relatos que compartilhou com a família ou quem quer que o conhecesse. Apesar de ser prática proibida na época, o comércio de escravos acontecia livremente nos portos do país. Por ainda estar muito fraco, que o tornava mercadoria de pouco valor, escapou de ir direto para os grilhões. Enquanto recobrava as forças, mantiveram-no temporariamente empregado a serviço da comunidade. Era cuidado e também cuidava da Igreja Matriz, se atarefando de pequenas reformas, trabalho de carpintaria, retoques na pintura, bem como a limpeza da área e incumbia-se de que a vegetação estivesse sempre rasteira no entorno do templo. Quando as portas se fechavam, era possível ouvi-lo trabalhando noite adentro.

          Com o passar do tempo, Erasto passou a fazer parte da rotina dos membros daquela congregação cristã e dos demais moradores de São João Marcos. Ele não mais precisava se esconder. Decidiu reconstruir ali, longe das correntes e lavouras cafeeiras, a vida que lhe foi roubada. Uma vez recuperado, continuou trabalhando como nunca. Passou a revezar-se entre o local de culto e as casas de família, a despeito do serviço exigido. Nos intervalos, recebia lições de leitura e escrita nos fundos da igreja de uma jovem aspirante a professora. Quando as coisas finalmente pareciam melhorar para o cativo, notícias vindas da capital federal apontaram o caminho contrário: uma crise no abastecimento hídrico no Rio de Janeiro forçaria o alagamento daquela região após obra necessária para a construção de uma barragem, autorizada pelo então presidente da República Getúlio Vargas.

          Antes que os moradores pudessem assimilar o golpe e sob o protesto de muitos, indenizações começaram a ser distribuídas. Não havia escolha. Diante da população atônita as primeiras casas foram demolidas. E não poderia haver arrependimento também, por isso era tão importante que não tivessem para onde voltar. Erasto foi um dos encarregados de colocar as casas abaixo. O trabalho mais difícil que já fez, porque conhecia a dor de ser obrigado a deixar sua vida para trás. Ele passou a acordar no meio da noite, assustado, sonhando com uma grande onda que cobria São João Marcos. Mesmo tendo amanhecido o dia, ocasionalmente o vento soprava mais forte fazendo lembrar o som do movimento das águas e Erasto era incapaz de olhar para trás, tomado pelo medo de descobrir que o pesadelo talvez fosse real.

          A cidade havia se tornado um cenário de despedidas. Estava quase totalmente vazia no momento em que se deu a sentença, a dura ordem final. Era chegada a hora de derrubar a Igreja Matriz. Erasto fora escalado, mas só descobriria ao chegar. Atravessou o longo caminho de pedras de cantaria e, diante das portas do templo, se deparou com inúmeras ferramentas perfiladas à sua escolha. Sob a fachada, vários políticos, autoridades policiais, operários e os últimos moradores, esses derramando lágrimas, esperavam em silêncio pelo início do trabalho. Ninguém teve coragem de derrubar as paredes da casa de Deus, nem mesmo os homens contratados para o feito. Não pelos mesmos motivos, mas Erasto se recusou a seguir a determinação. Ajoelhou-se diante da igreja, pegou uma das pesadas marretas e a arremessou tão alto que atingiu a copa de algumas árvores, desaparecendo no mato ao pousar. Ele sabia que depois daquele episódio, precisaria deixar a cidade antes mesmo do término das desocupações. Seria um alvo fácil para tanto ressentimento que pairava no ar. Além do mais, ele ainda era um escravo e sua única vontade deveria ser a de receber ordens. Sabendo disso, partiu no meio da noite acompanhado de sua jovem professora, Eulália. Não viram quando, por fim, a igreja foi dinamitada.

          Essa é minha versão da história sobre como nasceu a nossa família. Meu avô ainda tem medo de água e a bacia sobre a cômoda ao lado da cama é parte do processo de mitridização do velho. Faço com que lave o rosto e as mãos a cada dez minutos. Mexo na água, às vezes, mantendo-a em movimento por um tempo para que o ruído vire quase um som ambiente. Gosto de acreditar que minha ajuda tenha lhe causado efeito positivo. Mas, independente do tratamento que eu criei para o problema dele, suas mãos estão sempre meio molhadas e ele as esfrega como se quisesse secá-las, o que só as deixa mais úmidas. Do mesmo jeito que os olhos grandes e protuberantes e os beijos sem dentes com os quais me recebe ao sermos reapresentados.

          Depois de prepará-lo para o passeio, fiz sua bagagem. Não sabia muito bem o que levar. De uma viagem assim, se espera trazer algo e não o contrário. Naquele dia, não seria diferente. Tudo pronto, descansei a mala praticamente vazia no chão, ao lado do balcão da recepção.

          Data: 18 de março de 2012.

          Responsável: João Marcos da Silva Benevides.

          Paciente: Erasto.

          Idade: 94 anos.

          Preenchi a ficha de autorização da saída dele com letra de diário e o mesmo capricho dos dias inesquecíveis. Deixara no carro o CD que ouviríamos no percurso da viagem. Com sorte, ele poderá se lembrar do quanto gostava. Quem sabe?

          Clube da Esquina e uma hora depois, resolvi tentar que o silêncio inspirasse uma conversa. Porém, meu avô não faz mais perguntas e as respostas são tão curtas quanto a limitação de seus movimentos em transmiti-las. Ele interage com gestos, é o seu corpo quem fala. Qualquer conversa vira uma dança contida, lenta, no ritmo dele. As mãos espalmadas sobre o colo, cabeça firme sobre os ombros e eu não consigo imaginar o que pensava enquanto avançávamos na estrada.

          Chegamos.

          Atravessamos o pórtico do local e, por fim, entendi. Meu nome era o mapa.

          “São João Marcos”, escapou-me.

          Ele meneou-se preso ao cinto de segurança.

          Os passos curtos foram imprescindíveis para que eu assimilasse. Hoje, o berço das histórias que povoaram a minha cabeça por anos se tornou um parque arqueológico. Ambos estivemos trabalhando com o fim de não deixar que essas ruínas fossem esquecidas, pensei. A vastidão tomada de verde, cercada por montanhas, me deixou paralisado. Não sabia onde pisar, por onde caminhar, em que lugar do passado adentraria no passo seguinte. Cavalos brancos vagueiam calmamente sobre o gramado tal e qual fantasmas. Durante a pausa, senti o braço de meu avô se desvencilhar dos meus. Segurei-o novamente e, dessa vez, ele é quem passou a me conduzir. Desviando de obstáculos invisíveis, ele foi me guiando pelos destroços da cidade onde parte da sua vida aconteceu. Onde se tornou homem livre, não apenas no papel. Onde se uniu à minha avó e nos originou.

          Senti-me um menino de novo, mas era ele quem tinha crescido. Uns minutos de caminhada e sua vagarosa viagem ao passado atravessou a Praça do Cruzeiro e nos trouxe ao portal da Igreja da Matriz, que se recusou a cair. Respeitosamente baixei a cabeça ao cruzar as colunas de pedra, seguindo-o. Os pés largos de meu avô tocaram o piso restante mais de setenta anos depois. Olhei para a cena como se não o fizesse pela primeira vez. Suas mãos úmidas recolhiam o pó deixado por anos enquanto acariciava os vestígios do santuário.

          Seguimos a trilha até o vestígio da construção mais próxima. Deparamo-nos com os escombros, que melhor lembravam uma habitação por aqui. Além da porta, umas janelas para contemplar a vista. Quis me aproximar. Ele ficou parado ao lado de uma pequenina árvore enquanto adentrava a Casa do Capitão Mor. Andei em círculos no interior da casa, igual a visita que procura pelo anfitrião nos menores detalhes dos cômodos por onde passa. Quando dei por mim, por sobre os muros caídos, notei que meu avô marchava em direção ao fim da senda, junto do Lago São João Marcos. Ele se abeirava do espelho d’água. “Bebem, junto à onda do letéio rio, as incúrias águas e o longo oblívio”, sonhei acordado. Preocupado, apressei-me ao perceber que banhava os pés. Foi então que ele voltou-se na minha direção e, com os olhos marejados, mergulhou de uma só vez. Corri até ele.

          Corri.

          Eu agarrei forte pela manga da camisa e o trouxe de volta. Sua expressão era diferente da que imaginei. Atirei-me de joelhos ao seu lado. Fiquei confuso. Foi tudo muito rápido. Com a mão sobre seu peito, senti sua respiração. Chamei por ele. Seu idioma particular não deu conta do que tinha para me dizer. A gesticulação ficou limitada para a conversa que nos esperava. Acomodei seu corpo encharcado contra o meu. Sua cabeça pendeu sobre meu braço delicadamente, reparei que seus lábios estremeciam.

          “Eu vi.”

          “O q-que você viu?”, perguntei aos tropeços.

          E, com a voz límpida, pura como a de um recém nascido, respondeu-me com os olhos serenos:

          “Tudo.”

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